O livro de Alexandre Guarnieri,
que tive a alegria de ler, é um projeto intrigante. A princípio, vemos um olhar
prospectivo, em que a poesia fala objetivamente das máquinas, suas engrenagens,
cilindros, graxa, ou então o espaço da fábrica, seus departamentos. A cidade
também é vista como uma fábrica, e estamos nela sem saber se somos operários,
objetos, consumidores, ou todas essas coisas ao mesmo tempo (o que nos remete a
um estatuto de coisa mesmo, sem rosto, embalagem sobre a qual se podem aplicar
os mais diversos rótulos e, pior, adicionar conteúdos muito diferentes, uma vez
que assumimos papéis diferentes de acordo com a conveniência - que por certo
não é a nossa).
Como fala Mauro Gama no posfácio,
Guarnieri tem uma relação intensa com a tradição que o percebeu, e talvez este
seja o ponto mais nevrálgico de Casa das Máquinas – os poemas fazem uma
arqueologia das décadas tecnológicas que há mais de 200 anos em que ficamos
mergulhados na graxa da indústria – os desenvolvimentos da máquina a vapor de
Watt a partir da década de 1750, o sistema biela-manivela
de Pickard em 1780 e outras pesquisas pulverizadas pela Europa. A expressão
pós-industrial nos faz pensar, falsamente, que os novos objetos aparecem como
que por encanto, sem operários que vivem e trabalham em condições subumanas,
quando não se suicidam – vide o exemplo da Foxconn, fabricante chinesa do iPad
e do iPhone para a Apple.
É este o ponto que me chamou
atenção na Casa das Máquinas – Guarnieri faz uma arqueologia de nosso tempo ‘pós-indutrial’,
volta ao sistema biela-manivela porque quer desentranhar do que está por trás
de camadas de zarcão e tinta o que seria a alma dessa máquina. Estamos falando
de uma metafísica das engrenagens e do livro que traz poemas que me parecem
querer ser sintomas – na impossibilidade da cura, ou da salvação, os poemas
mostram as fraturas, as células que enlouqueceram nesse organismo de metal e
graxa. Uma das chaves para isso me parece estar no poema “século XX”.
Casa das Máquinas seria, então,
um livro que se dobra sobre estes mais de 200 anos como quem olha no espelho e
quer ver que face aparece neste reflexo. Foi deste modo que percorri todas as suas
páginas, sobressaltado. Segue um dos poemas do livro, catálise pesada’, que nos
direciona para a contraparte química de todo o processo.
catálise
pesada
em qualquer química
limpa, de equilíbrio tranquilo,
uma revolução espreita, em
potência, um inimigo sujo
lateja entre os componentes
reconhecidos da fórmula
pacífica, o
reagente intruso dança,
ainda oculto, no
ambiente aparentemente belo do laboratório estéril ;
interna, a guerra de
uma reação em
cadeia começa
singela e
lenta, bem serena,
até que o
catalisador
grite alto
entre as moléculas o nome do descontrole,
infiltrando a
fricção, inicialmente tímida,
pelas
frinchas e
fraturas do composto
ainda líquido;
minúsculas frações lutam entre
si, aquecidas, se desa-
justam resistindo,
peças de um irrecuperável puzzle
em brasa,
até que tudo
cristalize desde as
fímbrias,
no início,
entre limites; projeta violentas
cristas
contra as
quais não há
saída, esfria, solidifica,
o
único bloco de
fúria, a matéria
fustigada pelos
centígrados pregressos; contra
qualquer antídoto
ou plano de contingência,
transpondo esse novo ataque
sobre o desígnio antigo; extravasados da fase, tendo
todo o
ciclo concluído (os
átomos sem pressa
reatados), ingredientes se
acalmam na prensa
de
uma das
câmaras de catálise
dessa indústria pesada;
terá sido
a receita tão
secreta, cifrada por
séculos
na maçonaria,reduzida à
metodologia ignígena da petro-
química? roubada d’algum
longínquo tomo da alquimia,
mal interpretada em nossos dias,
fazendo, ao invés, do
valioso ouro perpétuo, o mero
chumbo espúrio e bruto?
Um comentário:
Valeu, Nuno!
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