domingo, 5 de agosto de 2012

Visita de Alexandre Guarnieri e sua 'Casa das Máquinas'.








O livro de Alexandre Guarnieri, que tive a alegria de ler, é um projeto intrigante. A princípio, vemos um olhar prospectivo, em que a poesia fala objetivamente das máquinas, suas engrenagens, cilindros, graxa, ou então o espaço da fábrica, seus departamentos. A cidade também é vista como uma fábrica, e estamos nela sem saber se somos operários, objetos, consumidores, ou todas essas coisas ao mesmo tempo (o que nos remete a um estatuto de coisa mesmo, sem rosto, embalagem sobre a qual se podem aplicar os mais diversos rótulos e, pior, adicionar conteúdos muito diferentes, uma vez que assumimos papéis diferentes de acordo com a conveniência - que por certo não é a nossa).

Como fala Mauro Gama no posfácio, Guarnieri tem uma relação intensa com a tradição que o percebeu, e talvez este seja o ponto mais nevrálgico de Casa das Máquinas – os poemas fazem uma arqueologia das décadas tecnológicas que há mais de 200 anos em que ficamos mergulhados na graxa da indústria – os desenvolvimentos da máquina a vapor de Watt a partir da década de 1750, o sistema biela-manivela de Pickard em 1780 e outras pesquisas pulverizadas pela Europa. A expressão pós-industrial nos faz pensar, falsamente, que os novos objetos aparecem como que por encanto, sem operários que vivem e trabalham em condições subumanas, quando não se suicidam – vide o exemplo da Foxconn, fabricante chinesa do iPad e do iPhone para a Apple.

É este o ponto que me chamou atenção na Casa das Máquinas – Guarnieri faz uma arqueologia de nosso tempo ‘pós-indutrial’, volta ao sistema biela-manivela porque quer desentranhar do que está por trás de camadas de zarcão e tinta o que seria a alma dessa máquina. Estamos falando de uma metafísica das engrenagens e do livro que traz poemas que me parecem querer ser sintomas – na impossibilidade da cura, ou da salvação, os poemas mostram as fraturas, as células que enlouqueceram nesse organismo de metal e graxa. Uma das chaves para isso me parece estar no poema “século XX”.

Casa das Máquinas seria, então, um livro que se dobra sobre estes mais de 200 anos como quem olha no espelho e quer ver que face aparece neste reflexo. Foi deste modo que percorri todas as suas páginas, sobressaltado. Segue um dos poemas do livro, catálise pesada’, que nos direciona para a contraparte química de todo o processo.




catálise pesada

em qualquer  química  limpa,  de  equilíbrio tranquilo,
uma revolução espreita, em potência, um inimigo sujo
lateja entre os componentes reconhecidos da fórmula
pacífica,  o  reagente  intruso  dança,  ainda  oculto,  no
ambiente  aparentemente belo do laboratório estéril ;

interna,  a guerra  de  uma  reação  em  cadeia  começa
singela   e  lenta,  bem  serena,   até  que  o  catalisador
grite  alto  entre  as moléculas  o nome do descontrole,
infiltrando    a    fricção,   inicialmente    tímida,    pelas
frinchas   e   fraturas   do   composto   ainda   líquido;

minúsculas frações lutam entre si, aquecidas, se desa-
justam  resistindo,  peças de um irrecuperável  puzzle
em  brasa,  até  que  tudo  cristalize  desde  as  fímbrias,
no   início,  entre limites;   projeta  violentas   cristas
contra   as   quais   não      saída,  esfria,  solidifica,
o  único  bloco  de  fúria,  a  matéria  fustigada  pelos
centígrados   pregressos;    contra   qualquer  antídoto
ou plano de contingência, transpondo esse novo ataque
sobre o desígnio antigo;  extravasados da fase,  tendo
todo   o   ciclo  concluído    (os   átomos   sem   pressa
reatados),    ingredientes  se  acalmam  na  prensa  de
uma  das  câmaras  de  catálise  dessa  indústria  pesada;

terá  sido  a  receita  tão  secreta,  cifrada  por  séculos
na maçonaria,reduzida à metodologia ignígena da petro-
química? roubada d’algum longínquo tomo da alquimia,
mal interpretada em nossos dias, fazendo, ao invés, do
valioso ouro perpétuo, o mero chumbo espúrio e bruto?